Experimente ver, pela primeira vez, o que você vê todo dia, sem ver.
Parece fácil, mas não é: o que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade.
O campo visual da nossa retina é como uma vazio.
Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que você vê no caminho, você não sabe.
De tanto ver, você banaliza o olhar.
Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio do seu escritório.
Lá estava sempre, pontualíssimo, o porteiro. Dava-lhe bom dia e, às vezes, lhe passava um recado ou uma correspondência.
Um dia o porteiro faleceu. Como era ele? Sua cara? Sua voz?
Como se vestia? Não fazia a menor ideia. Em 32 anos nunca conseguiu vê-lo. Para ser notado, o porteiro teve que morrer.
Se, um dia, em seu lugar estivesse uma girafa cumprindo o rito, pode ser, também, que ninguém desse por sua ausência.
O hábito suja os olhos e baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver: gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.
Uma criança vê o que um adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez, o que, de tão visto, ninguém vê. Há pai que raramente vê o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher.
Nossos olhos se gastam no dia a dia, opacos.
...É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença."
Otto Lara Rezende
Texto publicado no jornal "Folha de S. Paulo", edição de 23 de fevereiro de 1992.
Obrigado Silmara!
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